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Capa de PLACAR de 5 de fevereiro de 1982
O Flamengo entrou no centro do debate novamente e teve início na briga de bastidor entre o clube e Libra ganhou um capítulo relevante nos últimos dias. A equipe rubro-negra discorda da distribuição por audiência entre as equipes do bloco econômico.
Assim, entrou com ação na Justiça do Rio de Janeiro bloqueando o repasse financeiro aos demais e causando uma onda de críticas. A negociação entre Flamengo e demais times da Libra pela distribuição por audiência já ultrapassa os oito meses, ainda sem acordo.
O bloco econômico entende que a gestão anterior do time rubro-negro concordou distribuir a audiência de um jogo em 50% entre os dois times envolvidos. No entanto, o atual presidente Luiz Eduardo Baptista (Bap) discorda, dizendo que não há documentos e alegando um certo isolamento nas discussões sobre o tema, ainda mais que a decisão precisaria ser unânime entre os times.
Dono da maior torcida do país, o Rubro-Negro já esteve outras vezers nesse debate. Da mesma forma, a outra potência de massas do país, o Corinthians, frequentemente é associado ao grande potencial midiático, que poderia vir a ser transformado em brilho esportivo.
Foi nesse debate que, na edição 611 de PLACAR, lançada dia 5 de fevereiro de 1982, a capa estampou a questão: “Por que o Corinthians não é um Flamengo?”. À época, o time carioca era atual campeão do mundo, enquanto o Timão ainda patinava continentalmente, ao contrário dos rivais do estado.
Confira abaixo o texto da Equipe PLACAR, com entrevista de Sócrates e texto de Juca Kfouri.
AH, SE O TIMÃO FOSSE UM MENGÃO…
…aprenderia a revelar jogadores no Parque São Jorge, compraria craques na hora certa, teria uma administração feita com competência. Numa frase: seria um grande e permanente supertime. Para a alegria da Fiel.
De sua casa no Méier, subúrbio carioca que escolheu como refúgio desde que pendurou as chuteiras há mais de três décadas, o lendário zagueiro Domingos da Guia acompanha a roda-viva do futebol. E é dele uma original análise sobre esse mistério que se chama Corinthians, enigma que tem consumido, ao sabor do tempo e dos incidentes, intermináveis elucubrações de humildes gredinos a afetados sociólogos.
— A torcida do Corinthians é como doente que necessita de remédio — define Da Guia. — O remédio é sempre o jogador caro, que é comprado para curar a doença. Como não existe milagre em futebol, o doente entra em convulsões e reage histericamente.
“Pobre no Rio é mais calmo que em S. Paulo”
A mais de 400 km de distância do país alvinegro, o ex-craque acaba, em todo caso, sendo traído por aquilo que lhe chega ao conhecimento. Ou seja, despreza o fato e prefere a versão. Eis aí uma alternativa confortável para alimentar discussões empolgantes, mesmo porque a massa corintiana é um exuberante material de debate.
O lateral Júnior, do Flamengo, baliza as posições das duas torcidas — a rubro-negra e a alvinegra — a partir de um raciocínio geo-sociológico: “O pobre do Rio não é tão agoniado como o de São Paulo. Talvez o maior lazer carioca o faça mais calmo, mais sossegado.”
Toda versão, no fim, revela o ponto de vista aparente, mostra a parte visível do iceberg. Sob o brilho cristalino do gelo, contudo, esconde-se o fato e suas origens, e nenhum deles oferece o menor charme ao observador de fora. O sociólogo paulista Bolívar Lamounier, que em 1976 participou — como cientista — da célebre invasão do Maracanã, levanta uma ponta do iceberg:
— O Corinthians é parecido com o Vasco. Suas torcidas há muito tempo se abriram a todos os estratos da sociedade, mas suas diretorias não. Por isso, acabam se tornando grupos políticos impermeáveis à pressão dos torcedores.
“Diretorias resistem à pressão popular”
Ou seja, a presidência de um clube originalmente de colônia só costumava reagir às pressões de sua própria elite dirigente.
A torcida, às arquibancadas. “O Corinthians pensa como um clube do Tatuapé, sua direção não sabe a força que tem”, pesquisou Flávio La Selva, fundador da Torcida Organizada Gaviões da Fiel.
O craque cosmopolita, habituado a rapazes e mordomias, sente-se cair no abismo quando adentra pela primeira vez as dependências do Parque São Jorge, no coração da metalúrgica zona leste paulistana.
Um exemplo? Paulo César Caju. Ele acertou seu contrato degustando um fino champanha francês e constatou, nos primeiros treinos no clube, que seu armário nos vestiários estava empesteado de baratas.
Menos por isso, e muito mais por se sentir desobrigado com um clube que, deve ter imaginado, não se dava ao respeito, Caju simplesmente deixou os cartolas falando sozinho. Ao contrário de sua conduta habitual — provar alguma coisa e então aprontar — ele nem se deu ao trabalho de mostrar jogo. Não precisava. E, no dia de reapresentação do elenco, em janeiro, nenhum diretor fazia alguma idéia de como contornar o vexame. Afinal, o jogador custara 10 mil dólares, várias passagens aéreas aos EUA e salário de primeira linha — para não mais que de repente, abandonar o clube.
“Eles sempre querem que salvemos o time”
E o que dizer então de Rondinelli?
— Que Deus da Raça que nada: o Rondinelli simulava contusão para não jogar, acusa Adilson Monteiro Alves, o jovem diretor de futebol do Corinthians.
Edição de PLACAR de 1982
Do Rio, o atual zagueiro vascaíno, que não completou meio ano no Corinthians, retruca: “Esse aí é filho do diretor. Não entende nada de futebol nem tem poderes para resolver pequenos problemas”. E resume o drama corintiano empregando uma retórica tão óbvia quanto o insucesso das contratações de impacto feitas para aculinar a Fiel: “Tá certo, eles nos compram, pagam direitinho, mas nos largam no campo com a obrigação de salvar o time.”
Por isso, talvez, um zagueiro que cresceu no clube deixou escapar uma confidencia comprometedora. Numa conversa com um companheiro, recordava:
— Lembra do ano passado, quando a gente inventava um estiramento para não ser escalado?
Dentro e fora de campo, enfim, o heróico Campeão dos Centenários afasta-se milhares de anos-luz do seu irmão gêmeo carioca, hoje campeão em irresistível crescimento. Zico, o próprio símbolo rubro-negro, garante: “O que falta ao Corinthians é ter mais jogadores formados em casa. A Fiel não tem um carinho maior pelo Vladimir?”
A ideia de produção domestica não passa de uma quimera demagogicamente explorada pelos cinco presidentes que comandaram o Corinthians nos últimos 34 anos – como se a nação fosse órfã de lideranças. AIfredo Ignácio Trindade, Vadi Helu, Miguel Martínez, Vicente Matheus e o atual Valdemar Pires pouco fizeram para revelar Rivelinos, Luisinhos ou Viadimires. Pelo contrário. Com uma dívida, hoje, de 110 milhões de cruzeiros, o clube mantém à meia-força o departamento amador e se alegra com a perspectiva de vender Sócrates, seu único fora-de-série.
— Isso é típico de uma diretoria de clube de colônia, pontifica o sociólogo Lamounier. – Como não quer perder o controle do clube nem abri-lo, nada arrisca. E essa política cautelosa acaba, a longo prazo, afundando tudo.
Falsos brilhantes de um novo rico
Quer saber? – Indaga o ex-centroavante Silva, que formou uma das melhores duplas ofensivas da equipe ea 1964 com Nei e acabou escorraçado do Parque São Jorge por intransigência de Vadi Helu. – Falta um time quase inteiro para que o Corinthians rivalize com o Flamengo – Silva afirma, sem dúvida magoado com o virtual processo de liquidação profissional de que foi vítima no clube. Num dia, era ídolo, artilheiro que só não aparecia mais por causa do Santos infernal; no outro, deram-lhe a fatídica camisa amarela dos reservas. Saiu para o Flamengo e, daí, para a Seleção.
Abreviando o circuito: os cartolas corintianos em tudo se assemelham a novos ricos deslumbrados com o consumismo. Em ocasiões especiais, são capazes de se endividar até a raiz do cabelo para comprar um colar de brilhantes que, não raro, se revelam falsos. São incapazes, no entanto, de investir um centavo numa produção teatral independente mesmo que a peça se chame “Um Juve- nil de Futuro”.
Até Domingos da Guia quase se desgraçou
– Esse negócio de valorizar só o do vizinho cria um ambiente de verdadeira paranoia – sentencia Júnior -. Uma diretoria desajustada não pode criar um bom ambiente entre os jogadores.
O sábio Domingos da Guia viveu o Corinthians de 1944 a 1947, e acha que na- da mudou:
– A situação do Sócrates é como foi a minha: quase caí em desgraça porque o presidente Trindade era um grande teimoso. Ele não me ouviu e não comprou reforços – como o goleiro Barbosa, que estava disposto a vir. Eu, sozinho, não podia fazer milagres, jogando com companheiros em fim de carreira, como o trio Jango, Brandão e Dino.
União, portanto, é uma palavra ausente no vocabulário dos jogadores alvinegros. A cada manhã eles podem ser surpreendidos por um novo colar de brilhantes. Ou por um ordinário par de brincos.
E, como as facções políticas – todas vinculadas àquela ideologia do imigrante de que fala Lamounier – são inconciliáveis, quem paga o pato é a massa. Nem foi por outra razão que, em março passado, o então vice-presidente Vicente Matheus arquitetou uma diabólica trama para indispor o presidente Valdemar Pires com a torcida. Deixou acertada, com dirigentes da Ponte Preta, a compra do goleiro Carlos e do zagueiro Oscar. No encontro decisivo, levou Pires a Campinas e fez questão de avisar a imprensa. Estardalhaço feito, as chamadas forças vivas da Ponte se mobilizaram para impedir o negócio. E assim foi.
“Os dirigentes precisam ter juízo e acabar com as brigas internas que sem- pre influem no time”, recomenda o vice-presidente do Flamengo, Eduardo Mota. Em Porto Alegre, o deputado Íbsen Pinheiro, do PMDB, propõe sua receita: – Todo Corinthians precisa ter um pouco de São Paulo.
Ibsen, em 1969, comandou o chamado grupo dos Mandarins, espécie de jovem guarda dirigente que construiu o imbatível Internacional da década de 70.
Uma proposta: copiar o modelo são-paulino
Apoiado pelo poderoso vice-presidente Aldo Dias Rosa, resolveu colocar “um pouco de Grêmio no Inter”. Significava que o futebol deveria ser administrado com a mesma frieza germánica do rival, que conquistara 12 dos 13 últimos titulos regionais. Eis as idéias de Ibsen:
– O São Paulo não é um modelo de clube? Então, copie-se a boa administração do São Paulo. Se houver competência, pode-se usufruir das vantagens de sua condição popular sem os prejuízos do populismo.
Populismo é a chamada contratação de impacto, especialmente em véspera de eleição. Competência se consegue reunindo dirigentes que decidam tendo um único objetivo em mente: montar um esquadrão. Mesmo que a torcida proteste, em nome de resultados imediatos, o grupo não deve se desviar do rumo.
O carioca Domingo Bosco, supervisor que já foi bi pelo Fluminense e tri pelo Flamengo, oferece sua experiência: “Recomendo formar um time como a Máquina do Flu. Para isso é preciso que se tenha audácia e visão. No Fluminense de 1975, só tínhamos o Edinho, mas a legião contratada pelo então presidente
Francisco Horta permitiu que o clube conquistasse títulos e realizasse um trabalho de base. Dal surgiram Edevaldo, Paulo Goulart, Robertinho e outros”.
“Paz política”, aconselha o ex-presidente Márcio Braga, que na verdade iniciou a gloriosa fase do Mengão. A partir disso, que se reúnam alguns executivos bem-sucedidos na vida e decididos a gerir o clube com mentalidade empresarial e planejamento. Esse trabalho vai das mudanças no Departamento de Futebol – que deve ser autônomo do clube – a uma agressiva política de marketing, para cobrar pelo uso da marca. Só de fábricas de material esportivo o Flamengo recebe 1,2 milhão por trimestre, além do próprio material de treino.
Domingo Bosco centra suas preocupações no elenco:
Enfim, é necessário mudar a mentalidade
– Deve ter no máximo 25 atletas. Os jogadores precisam ser ouvidos nas decisões que os afetem. Suas relações pessoais devem ser respeitadas. Se o Nunes não gosta de muita conversa, que os outros respeitem sua privacidade. Da mesma forma, nunca se deve tornar público problemas pessoais. O clube não pode desgastar a imagem de seu jogador, acima de tudo um patrimônio.
O centroavante Serginho, do São Paulo, teme o Corinthians por causa dessa promiscuidade. Sobreviveria 12 jogos sem marcar gols, como já lhe aconteceu? Aguentaria um conselheiro desaforado criticá-lo após a primeira indisciplina? “Sofreria muito no Corinthians”, admite Serginho. Mas seus olhos brilham quando pensa no desafio:
Gostaria, sim, de jogar com aquela camisa: faria gols que fizessem a torci da ser mais alegre, não torcer tão amargamente. Eu faria a torcida esquecer que o Corinthians tem má administração. Em vez disso, ela teria um artilheiro que a entenderia!
Serginho, certamente, não será o elixir milagroso para os males corintianos. Pois, antes de pensar em contratar quem quer que seja, o Corinthians precisa é mudar suas ideias e métodos administrativo, criar uma escolinha de futebol que funcione, arejar-se, dar enfim aos seus profissionais um ambiente respirável de trabalho, em que eles possam se unir pelo objetivo comum das vitórias. Como no Flamengo.
SÓCRATES: “GOSTO, MAS NÃO AMO”
Tratando-se em Ribeirão Preto da torção no tornozelo direito que o manterá afastado do time por mais 15 dias, Sócrates falou com a habitual franqueza ao repórter Sidnei Quartier, de PLACAR, sobre suas relações com o Corinthians.
Edição de PLACAR de 1982
PLACAR: Como transformar o Corinthians num supertime como o Flamengo?
SÓCRATES: Bem, quase todo o time do Flamengo foi feito lá dentro, inclusive o Nunes. Eu sempre defendi a criação de uma divisão juvenil forte no Corinthians, e dou um exemplo: o São Paulo. Mesmo investindo em contratações, revelou Zé Sérgio, Serginho e Heriberto. Sem juvenis, o clube é obrigado a trocar de time a cada três anos. Não há bolso que aguente.
PLACAR: Você é ídolo da Fiel?
SÓCRATES: Não me considero. Ídolos são Biro, Vladimir e Zé Maria. O Biro é extrovertido, chegou e se identificou com a torcida. Agora, a torcida do Corinthians é igual a qualquer outra: exige vitórias, muitos gols e grandes exibições.
PLACAR: O Zico costuma fazer declarações de amor ao Flamengo. E você?
SÓCRATES: Nunca disse que amo o Corinthians. Posso gostar, amar não. Em compensação, o Vladimir deve amar o Corinthians: come- çou lá mesmo. O time que me cativou quando garoto foi o Santos de Pelé. Mas hoje nada sinto. Sou um profissional. Quem sabe, se eu continuar no Corinthians, poderei dizer do fundo do coração daqui a uns oito anos que amo o Corinthians.
PLACAR: Como deve agir um dirigente para montar um supertime?
SÓCRATES: No aspecto relações com o jogador, acho que o dirigente de- ve ser paternalista, deve mimar o joga- dor, que precisa de carinho. Qualquer um, independente de cultura ou grau de escolaridade. Às vezes, por causa de um gesto carinhoso, paternalista, o jogador ganha confiança e robustece seu condicionamento psicológico para enfrentar um momento difícil.
PLACAR: Você concorda que o Corinthians não consegue jogar cadenciado, de maneira fria?
SÓCRATES: Depende dos jogadores. Se o Corinthians tiver um time de bons jogadores que cadenciem o jogo, nem a maior e mais barulhenta torcida do mundo conseguirá mudar o estilo de jogo. O Corinthians, hoje, pratica os dois tipos de jogo: tudo depende do resultado.
A DIFERENÇA É QUE DEUS E FLA?
Existem algumas razões que talvez expliquem por que o Corinthians não é o Flamengo:
1- O flamenguista é mais inteligente que o corintiano;
2- O Rio de Janeiro é um Estado mais rico que São Paulo;
3- Deus é rubro-negro.
A primeira hipótese não seria defendida nem pelo mais idiota dos geneticistas. A segunda é escandalosamente falsa e a terceira carece de provas, posto que ninguém jamais ouviu dele tal declaração.
Mas a diferença entre o Timão e o Mengo é estonteante. Um disputa a Taça de Prata, o outro é campeão do mundo. Um só tem o Sócrates – e quis vendê-lo recentemente -, o outro tem Zico e mais cinco ou seis jogadores de nível de seleção.
Existem, no entanto, algumas semelhanças óbvias. Ambos possuem as maiores torcidas do país e um inesgotável potencial para explorar.
E é no que têm de igual que se descobre a chave do que os diferencia. Numa palavra, falta ao Corinthians o que sobra ao Flamengo: competência.
Enquanto o clube carioca é dirigido por um esquema composto por homens que tratam o futebol com uma visão empresarial, o paulista é gerido como um pequeno empório da zona leste.
Enquanto, na última quinta-feira, 10 mil torcedores assistiam ao ridículo empate do alvinegro, no Pacaembu, por 1 x 1, contra o modesto Colatina, pela Taça de Prata a que ambos fazem jus, o Flamengo massacrava o Treze por 5 x 0, pela Taça de Ouro, é claro, com quase 20 mil pessoas no Maracanã.
Pobre Corinthians! Seu jovem diretor de futebol teve a coragem de dizer a PLACAR que, no papel, o frágil time corintiano é superior ao Flamengo. Ou quer estimular o elenco – hipótese mais compatível com sua imagem de moço inteligente – ou enlouqueceu.
O jejum de títulos parecia coisa do passado. Se os corintianos competentes não acordarem, a história se repetirá. Como comédia.