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Evaristo de Macedo: bon-vivant convicto e campeão das resenhas
Evaristo de Macedo: bon-vivant convicto e campeão absoluto das resenhas
Aos 92 anos, ídolo de Real Madrid, Barcelona e Flamengo gosta de ser lembrado em entrevistas, mas agora só quer aproveitar a bela vista do mar e o legado eterno que construiu
Do alto do apartamento em que vive, bem de frente para a praia de Ipanema, Evaristo de Macedo contempla tranquilo a vista – que até parece não ter fim pela imensidão do mar.
“O senhor ainda vai à praia?”, pergunto. “Às vezes, filho, mas agora é bem mais difícil tomar banho de mar. Vai que ele me leva”, sorri, ao melhor estilo Evaristo, que nos convida a sentar em sua sala com um alerta. “Só cuidado aí que um filho da p… veio me entrevistar e quebrou o braço dessa poltrona. A Norma (esposa) ficou uma fera”, gargalha.
Aos 92 anos, o ídolo de Barcelona, Real Madrid e Flamengo, único jogador a marcar cinco vezes em uma mesma partida pela seleção brasileira – recorde de que se orgulha até hoje –, campeão brasileiro como técnico do Bahia em 1988 e com passagem por 16 clubes, além de três seleções, segue com o humor afiado de sempre. Sai pouco de casa, mas não perde um só jogo pela televisão. “É a minha companheira (risos).”
Antes do início da entrevista, ele grita: “Quem manda nessa p… sou eu”. A fala é seguida de um sussurro: “Pena que ninguém obedece”. E mais gargalhadas.
Evaristo se diz bem resolvido com a vida, não sente saudades do futebol. “Já cheguei à casa dos 90, então não sonho com mais nada.” Ri ao lembrar que chamava a antigos comandados de “ruins” ou “pernas de pau”. “Era brincadeira, era brincadeira… Nos clubes em que estavam não podiam ser ruins assim.”
Evaristo e o inconfundível sorriso lembrado até hoje entre os boleiros – Alexandre Battibugli/Placar
Sempre citado por ex-jogadores em podcasts por causa de histórias marcantes, confessa que muitas delas já se esvaíram da memória. “No futebol, há momentos em que você dirige um time em que você perde a seriedade e passa a ser um outro jogador convivendo com eles. E essa foi uma delas”, conta sobre o famoso pênalti em que ensinou ao ex-meia Allan Delon, quando era técnico do Vitória.
Evaristo recebeu recentemente um duro golpe. Em março de 2023, sofreu com a perda do amado filho Evaristo “Chamaco”, nascido na Catalunha, que morreu aos 64 anos em casa, vítima de um infarto fulminante. Mesmo assim, não se lamenta de nada. Nem do fato de não ter disputado uma Copa. “Não faltou nada, não. Em uma carreira, o sujeito faz as oportunidades que tem. E não houve grandes oportunidades [na seleção]”, sintetiza. “Tive uma carreira muito longa no futebol, com bons momentos, maus… Faz parte da vida da gente.”
“Obrigado, Evaristo, foi uma honra”, agradecemos. O antigo camisa 9 responde de bate-pronto, com o irresistível bom humor: “Obrigado, nada, agora vocês me devem um café ou um almoço”. O enorme legado de Evaristo é como a bela vista de seu apartamento: infinda.
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O senhor ainda acompanha futebol? Sim, é algo que dificilmente vou deixar de fazer. Eu já não vou mais ao Maracanã, não tenho mais pique de ir até lá, descer do carro, aquela coisa toda, sabe? Não quero, prefiro em casa. A TV é minha companheira (risos).
Mas assiste a tudo? Tudo. O que tiver na televisão eu vejo.
E o que mais gosta? Partidas de futebol europeu, brasileiro… Flamengo? Seleção? Como vivo aqui, gosto do futebol brasileiro, mesmo. Para mim, é o melhor de todos.
Folheando a histórica Placar de 1985 que guarda em um pequeno ‘museu’ em sua casa – Alexandre Battibugli/Placar
O que acha do nível? Mudou para melhor ou para pior? O futebol foi mudando com o tempo, porém a essência dele continua a mesma. O mesmo chute, o mesmo drible, a mesma cabeçada, a mesma coisa, entende? Claro que hoje é um pouco mais rápido, porque se faz melhor o condicionamento físico. Mas só.
O último trabalho que o senhor fez foi no Athletico-PR, em 2005. Lá se vão 20 anos. Sente saudade de estar no campo, do dia a dia com os jogadores? Não, já tive os meus momentos (risos). Tudo depende da idade, da pessoa. Mas, quando você vai envelhecendo, vai esquecendo algumas coisas. Eu tenho saudade só de jogar futebol, não de dirigir uma equipe.
Há uma frase conhecida do Paulo Roberto Falcão, dizendo que o jogador morre duas vezes. Ainda sonha com os tempos de Barcelona e Real Madrid? Agora, não (risos). Já cheguei na casa dos 90, então não sonho com mais nada. Assisto aos jogos tranquilamente, mas não tenho aquela ambição antiga de voltar a querer ser um jogador, nada disso. Nem em sonhos.
Evaristo admira as fotos históricas de Placar: ‘até que fiz algumas coisinhas’ – Alexandre Battibugli/Placar
A cada entrevista de jogadores e ex-jogadores, o senhor é lembrado com uma história curiosa ou engraçada. Gosta de ouvir o seu nome tantas vezes na resenha do futebol? É bom, ser lembrado é sempre muito bom. A gente não pode impedir alguém de completar anos, de crescer, então acho fantástico não me esquecerem de jeito nenhum.
Em uma delas, contam sobre uma discussão que o senhor provocou para que o Romário melhorasse em uma partida pelo Flamengo. Ele acabou marcando três gols depois. Eu lembro que a gente teve uma discussão no decorrer do jogo, mas que depois as coisas se acalmaram. Até hoje somos companheiros e amigos. Como treinador, eu tinha obrigação de fazê-lo jogar bem, por isso o provoquei. Ele aceitou, era extraordinário, um jogador fantástico.
Hoje os treinadores têm cuidado com a forma como vão falar, enquanto com o senhor era tudo menos previsível. Faltam mais Evaristos no futebol? O treinador, na realidade, tem que demonstrar primeiro conhecimento, para ser bom. Depois, precisa ser um criador de situações com os jogadores para que cresçam, sabe? E nesse aspecto fui muito feliz, fui muito bem, mesmo. Muitos jogadores cresceram porque a gente ajudava e eles chegavam lá em cima.
O Alex, ex-Cruzeiro, Palmeiras e seleção brasileira, disse que uma vez ouviu o senhor dizer: “Quero ver treinar esses m…, com esses aí que você tem é fácil”, se referindo ao seu próprio time no Bahia. Hoje no futebol é difícil pensar nessa cena acontecendo, não? O futebol mudou, está diferente. Hoje tem muitos procuradores, antigamente era a própria família que cuidava. Tudo era simples.
Em uma das passagens como técnico pelo Santa Cruz, na década de 1970 – Silvio Ferreira/Placar
Então seria difícil ser Evaristo nos dias de hoje? Seria, seria (risos). Acho que tudo cresceu no futebol. Não é mais aquilo que joguei, o ambiente que convivi. Hoje está muito diferente. Há muito interesse e muito dinheiro no futebol.
O Renato Gaúcho seria o discípulo mais próximo do que foi o senhor como treinador? Que sabe conversar com o jogador, contar uma piada, mas que também entende da parte da tática? Talvez, mas eu tive outros jogadores também que se aproximaram muito de mim, que a gente (comissão técnica) fez coisas que eles faziam. E eles faziam coisas que nós fazíamos. O futebol do dia a dia é uma coisa muito diferente do que as pessoas pensam.
Hoje a seleção tem um técnico estrangeiro: Carlo Ancelotti. O que pensa dele? Gosta ou devia ser um brasileiro? Acho que foi escolhido porque é um sujeito competente. É evidente que nós sentimos falta de um treinador brasileiro dirigindo a amarelinha, mas, no momento atual, não tanta. Ancelotti é um bom técnico, que possui características brasileiras. E vamos torcer por ele. Eu torço por qualquer um que seja o treinador da nossa seleção.
E por aqui há técnicos portugueses, argentinos… Hoje o futebol brasileiro está muito aberto, entende? Antigamente, não. Era fechado a estrangeiros.
Pela seleção, em fevereiro de 1985: poucos jogos e mais uma Copa que não conseguiu chegar – Rodolpho Machado/Placar
Gosta de assistir aos jogos da seleção? As pessoas parecem não ter mais a mesma paixão Na televisão é diferente de quando se está no Maracanã assistindo a um jogo, muito diferente. Mas a gente continua acompanhando, olhando e torcendo por eles, porque queremos que o futebol brasileiro progrida, vá sempre na frente. Sou um torcedor. Deixei de ser um profissional para ser um entusiasta.
O senhor teve uma breve experiência à frente da seleção em 1985. Ficou alguma frustração por não ter tido mais oportunidades, seja como jogador ou treinador? Não ficou, não. Em uma carreira, o sujeito faz as oportunidades que tem. E não houve grandes oportunidades para mim com relação à seleção. Não fui um treinador, fui um torcedor. Todo o brasileiro, no fundo, aquele que gosta de futebol, é um torcedor e um dirigente ao mesmo tempo. Está sempre criticando o treinador atual (risos), isso faz parte do futebol. Eu tive uma carreira muito longa no futebol, com bons momentos, outros maus… Faz parte da vida da gente.
Uma resposta do senhor na PLACAR desse mesmo ano: “A meta é a Copa e vou chegar até lá”. Pois é (risos), às vezes o treinador planeja, mas não chega. Faz parte. A gente tem objetivos no futebol. O centroavante quer ser o artilheiro do campeonato, por exemplo. Eu tenho saudade do futebol, mas sem aquela coisa “eu fiz ou deixei de fazer”.
Não carrega dores, então? Não, o futebol é assim mesmo.
Curiosamente, o senhor ainda é o recordista de gols em uma única partida pela seleção: os cinco contra a Colômbia, na Copa América de 1957. Acredita que essa marca será superada um dia? O futebol hoje é muito mais disputado, mais chegado. Será difícil um jogador fazer cinco num jogo, a não ser que a seleção convide outra para um jogo mais fácil. Aí, sim, mas contra os países que jogam é difícil. E o juiz ainda me anulou um gol, impedindo o meu sexto. É um recorde, mas torço para que alguém apareça para fazer cinco ou seis gols. Não sou aquele que quer manter o recorde para sempre.
Da esquerda para a direita: Claudio, Zizinho, Zezinho, Evaristo e Pepe pela seleção – Ignacio Ferreira
Uma lembrança recorrente nos podcasts é a história do pênalti do Allan Delon, que o senhor foi ensinar como bater um pênalti com categoria e errou. Lembra disso? É que há momentos que você dirige um time e perde completamente a seriedade, passa a ser quase um outro jogador no convívio com eles. E essa foi uma das histórias (risos). Tenho muitas outras assim. A verdade é a seguinte: as memórias do atleta não ficam só no jogo, mas em todas as coisas que envolvem o futebol.
Jogador reclama da concentração, do salário, das viagens, mas quando aposenta tem saudade de tudo isso, não é? É normal. Quando você deixa de jogar futebol, sente falta. Convive todos os dias com outros companheiros, tem outra personalidade. A gente tem uma saudade muito grande dessa época. Todos os atletas têm histórias para contar. Durante a carreira é mais difícil, porque a cada jogo é uma disputa por posição, você sabe que o reserva pode entrar. Mas depois desfruta.
O senhor sempre falou na lata: “Esse cara é muito ruim, perna de pau”… Já trabalhou com muito jogador ruim, mesmo, ou era só uma forma de descontrair? Brincadeira, brincadeira (risos). Nos clubes que eu trabalhei, não dava para ter perna de pau. Eles tinham que ser bons, senão eles não pertenceriam àquelas equipes. Na realidade, você tem um elenco de 25 jogadores e só jogam 11. O técnico precisa ser habilidoso não com aqueles que estão jogando, mas com os que não estão, que precisam estar sossegados e tranquilos. Essa era uma forma de descontrair.
Foram muitos clubes. Tem algum que o senhor guarda um carinho a mais? Tem o Bahia, o Santa Cruz, o Flamengo… Mas um clube que realmente sinto saudades é o Madureira, o meu primeiro. Ali comecei a minha vida esportiva, e até hoje me lembro, gosto e quero saber. Fico triste pelo Madureira não conseguir reunir condições necessárias para crescer dentro da estrutura do futebol atual.
Como técnico do Bahia: quatro estaduais, um Brasileiro, uma Copa do Nordeste e o nome ao CT do clube – Fernando Vivas/Placar
Madureira era um grande formador… O Madureira foi um grande formador, mas hoje as coisas mudaram. Não podemos dizer que continua na mesma tecla, é uma realidade totalmente diferente. Eu morava no Grajaú, pegava trem. Ia andando da estação até o campo do Madureira.
O senhor também dirigiu clubes paulistas. Gostou de trabalhar em São Paulo? Eu trabalhei lá com bom espírito, vontade de triunfos, mas gostava mesmo de estar no Rio de Janeiro. Sentia falta da casa, da família. Mesmo assim, consegui me adaptar em todos os lugares.
E as amizades no futebol, ficaram muitas? Uma delas é com o Antônio Lopes, certo? Sim, o Lopes é meu vizinho e meu amigo. É um bom vizinho (risos).
Renato Gaúcho joga futevôlei próximo à casa do senhor. Sim, a praia é atrativa, e o cara que jogou futebol gosta muito de estar lá. Então, vira e mexe aparece um ou outro jogador. Atualmente, que eu saiba, não tem nenhum aqui por onde moro. O Renato tem um apartamento perto e eu o vejo na praia às vezes, mas já deixei de ser um frequentador.
O senhor recebeu o convite para um almoço com o Ancelotti. Vai acontecer? Estou aguardando o momento de a gente sentar e conversar, de ele vir aqui em casa. A vida do treinador é muito difícil, porque precisa de vitórias, é a coisa mais importante. Não adianta ter feito isso ou aquilo, só querem saber se ganhou ou perdeu.
Evaristo caminhando pela praia: ‘hoje não vou mais tomar banho de mar, vai que ele me leva’ – Rodolpho Machado/Placar
E como está de saúde hoje? Em julho do ano passado, o senhor fraturou o fêmur e o quadril. Graças a Deus, estou bem. Estou com 92 anos, tranquilo. Saio pouco de casa, não tenho problema de nenhuma ordem. Ainda recebo muitos amigos em almoços e jantares. Para mim, eu jogo mais futebol dentro do meu apartamento (risos).
São amigos do meio da bola? Normalmente, meus melhores amigos são do futebol. Fico muito contente com todos.
E o que gosta de fazer além de ver jogos na TV, receber os amigos? Moro perto do Flamengo, então de vez em quando vou ao clube, mas não com a frequência de antigamente. Continuo indo porque meus filhos gostam de ir, os netos… Daí acompanhamos eles. Temos uma família muito grande.
E o que não gosta de fazer? Fisioterapia. Como jogador, eu tive muitas lesões, a perna esquerda foi muito sacrificada. Mas consegui jogar, claro. Hoje ela apenas me ajuda a caminhar. Agora não faço mais (fisioterapia), chegou um momento que parei de tudo. Tenho uma belíssima vista do mar, observo se a maré está cheia ou não, se a praia está cheia ou não. Gosto de ficar em casa, mesmo, de me sentar para ver o mar. E acho que se eu saísse daqui sentiria falta.
Tem outro hábito? Vê outros esportes? Não, só o futebol, mesmo.
Amado por seus antigos comandados, Evaristo é lembrado a cada semana: ‘acho fantástico não me esquecerem’ – Edson Ruiz/Placar
O Leandro, ex-lateral que trabalhou com o senhor no Vitória, conta sobre uma passagem em que perguntou onde morava. Ele disse: “Nova Iguaçu, Evaristo”. E o senhor brincou dizendo que não era Rio de Janeiro. Afinal, é ou não é? Eu acho que não é Rio, não (risos). Não tenho certeza. É longe, e longe à beça. Quando comecei a jogar, morava na zona norte, mas depois que cheguei ao Flamengo me acostumei a ficar aqui (na zona sul). Antes de me casar, tinha minhas namoradas por aqui, era ótimo (risadas). Depois passei a ser um cara caseiro. Faz parte da vida. Agora nesse apartamento reúno meus filhos, netos e bisnetos, mas mais do que isso não vou chegar. A vida da gente tem um limite.
Há uma matéria da PLACAR contando como o senhor e o Zagallo resistiam na longevidade como treinadores. A sua durou até 2005. Hoje o senhor alcançou também a longevidade na vida… Eu tive uma vida tranquila. E espero continuar assim por mais um tempo. Sei que não sou eterno, infelizmente uma hora vou me despedir. Mas será satisfeito com aquilo que eu fiz.
IMORTALIZADO EM PÁGINAS
“Evaristo de Macedo, o símbolo sagrado do futebol”, do historiador Luciano Ubirajara Nassar e do jornalista Sérgio Pugliese, é a biografia de Evaristo que será lançada ainda neste ano, publicada pelas editoras Nassar e Museu da Pelada, com 300 páginas.
Reverenciado no Barça, Evaristo é o brasileiro com mais gols na história do clube catalão – Reprodução
“Evaristo foi um ídolo, um mito e um símbolo. Um homem que desbravou territórios. Abriu as portas da Espanha como jogador e do mercado árabe como treinador. Elogiado por Di Stéfano e reconhecido de verdade pelos dois grandes clubes, mesmo com uma mídia precária. Foram 178 gols pelo Barcelona, com dados oficiais, muito mais que Neymar, Romário, Ronaldo, Rivaldo… E no Real Madrid, já mais velho, saiu da condição de atacante impetuoso para um meia”, conta Ubirajara, autor também de obras biográficas de craques históricos como Julinho Botelho, Edu, Dener, Doval, Enéas e Leivinha.