Ketlen Wiggers acaricia a barriga, que quase não cabe mais no uniforme de treino do Santos, e abre um largo sorriso. Aos 33 anos, a atacante, maior artilheira da história do time feminino do clube (207 gols em 363 jogos), as Sereias da Vila, vive um momento diferente de todos os outros que marcaram a sua carreira. Depois de centenas de gols, títulos, quedas e renascimentos, ela agora se prepara para o desafio de se tornar mãe. O parto já tem data marcada: 20 de novembro.
“Eu sempre sonhei com isso”, diz, com a voz suave, como quem confessa um segredo guardado há anos. “Deixei nas mãos de Deus o momento certo, porque sabia que teria que parar de jogar por um tempo. Mas queria muito que fosse quando Ele quisesse. E Ele quis agora. Quando vi o teste positivo, chorei por uns dez minutos sem parar. Chorei porque era um sonho, mas também porque pensei: ‘E agora, como vai ser com o futebol?’. Mas no fundo eu sabia que tudo se ajeita, sempre se ajeitou.”
O anúncio veio duas semanas antes do início da Série A2 do Brasileirão. Artilheira da Libertadores no ano anterior, a novidade embaralhou tudo – para ela e para o clube, rebaixado em 2024 pela primeira vez ao segundo patamar nacional.
“No começo foi um choque, porque eu estava muito focada no projeto de volta à Série A1. Mas, ao mesmo tempo, foi uma alegria imensa, porque era o maior sonho da minha vida. Eu lembro de contar para as meninas no vestiário e elas gritaram, pularam, me abraçaram. Até hoje elas dizem que o Lucca é o xodó do elenco, que já nasceu santista.”
Treinos até na gestação: meta de quem quer retornar rapidamente aos gramados – Reinaldo Santos/Santos FC
Na concentração, as colegas a abraçavam, riam, perguntavam sobre enxoval e davam conselhos de maternidade. Dentro dela, além do bebê, crescia também um turbilhão de memórias: a menina de Rio Fortuna, os campos de terra, as bolas murchas, a mãe Rosiléia brava pela insistência no sonho em ser jogadora e a professora cúmplice do sonho de se tornar uma jogadora de futebol – uma extensão do que planejou a avó Dozolina, morta antes de seu nascimento, mas uma influência direta, cultivada pelas histórias do prazer que tinha de ouvir aos jogos do Santos pelo rádio em Rio Fortuna.
O município no interior de Santa Catarina tem pouco mais de 4 000 habitantes. Quando criança, futebol feminino ainda era quase uma utopia. A cidade tinha ruas de paralelepípedo, festas religiosas na praça e tardes silenciosas interrompidas apenas pelo som de bolas batendo em paredes velhas.
“Eu ia para a escola toda arrumadinha, vestida de princesa, mas minha professora escondia um uniforme para eu poder jogar com os meninos. Minha mãe só descobriu isso anos depois”, recorda, rindo. “Eu adorava chegar em casa toda suja, mas levava bronca. Só que era mais forte que eu. O futebol sempre foi minha alegria, meu escape. Enquanto eu estava com a bola no pé, esquecia de tudo.”
Ketlen e Thaisinha: promessas nos anos 2000 e hoje as mais experientes – Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC
A primeira grande chance veio numa peneira com 800 meninas. Ketlen entrou no ônibus com uma mochila pequena, um par de chuteiras e um medo enorme do desconhecido. “Eu olhava pela janela e pensava: ‘Será que eu sou boa o suficiente?’. Mas ao mesmo tempo tinha aquela vozinha dentro de mim dizendo: ‘Vai, tenta, não desiste’.”
A jovem ainda chegou a morar na casa do antigo treinador, Kleiton Lima, e foi forjada logo de início entre nomes de peso da modalidade, como Cristiane e Marta, companheiras nas conquistas da Libertadores de 2009 e 2010. “Eu olhava para o lado e via a Marta, a Cristiane… era surreal. Eu ficava quieta, só observando. Aprendi muito com elas. Sempre fui muito observadora, prestava atenção em tudo: no posicionamento, na forma de treinar, até no jeito de se comportarem fora de campo. Um dia a Marta me disse: ‘Você tem talento, acredita em você’. Eu nunca esqueci.”
Nos primeiros anos, vieram títulos, gols e a consagração das Sereias da Vila como potência do futebol feminino. Houve finais com estádios cheios, viagens internacionais, dias de festa. Mas a carreira, como o futebol, é feita de vitórias e derrotas. Em 2024, assistiu da arquibancada, impotente por conta de uma lesão no púbis, ao episódio mais triste da história do clube.
“Eu chorei todas as noites durante um mês. Era uma das líderes do elenco e não consegui ajudar. Tentamos de tudo, mas a bola não entrava. Foi um dos momentos mais difíceis da minha carreira. Eu me sentia responsável, mesmo sem poder jogar. Doeu muito.”
A maior artilheira da história do time feminino, a sexta contabilizando também os homens – Fernanda Luz/Agência Paulistão
O retorno à elite, no ano seguinte, trouxe alívio e também a certeza de que o futebol é capaz de registrar páginas lindas de superação. “Quando a gente subiu de novo, eu chorei igual criança. Foi um peso que saiu das costas. Eu aprendi ali que a gente não pode se abater, porque o futebol sempre dá uma nova chance.”
Ketlen aprendeu cedo a ser uma fortaleza. Aos 18 anos, Ketlen recebeu o diagnóstico de epilepsia de ausência. A primeira crise ocorreu apresentando um trabalho na faculdade, perdendo subitamente a consciência. Dois médicos disseram que era hora de parar. Ela ignorou.
“Fui até um especialista em São Paulo e perguntei: ‘Posso continuar?’. Ele disse: ‘Você já teve crise em campo?’. Respondi que não. E ele: ‘Então continue. Não há motivo para parar’. Era a resposta que eu queria ouvir. Saí do consultório decidida: eu não ia desistir. Nunca.”
Desde então, disciplina virou palavra de ordem. “Nunca bebi álcool, nunca deixei de tomar os remédios. Sempre fui muito responsável com a minha saúde. Eu sabia que, se não fosse assim, poderia perder tudo. E eu lutei demais para chegar até aqui.”.
Em sua segunda passagem pela Vila, Ketlen completou dez anos desde a volta – Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC
Curiosamente, ela jamais teve os episódios de ausência durante os treinamentos ou jogos, algo que nenhum médico soube explicar: “Durante os testes que faço periodicamente, o de eletroencefalograma, um deles é com a respiração ofegante. E é onde há mais alterações e a propensão a crises. Ninguém sabe explicar como nunca tive”.
A gravidez trouxe novos medos. “Conversei com os médicos, ajustamos as doses e está tudo bem, graças a Deus. Precisei triplicar já minha medicação, há o temor constante. Vou precisar de ajuda no pós-parto, principalmente com o sono. Meu marido já disse que vai cuidar da amamentação e do banho para que eu possa descansar. Ele fala: ‘Você cuida do futebol, eu cuido das fraldas’. Isso me tranquiliza.”
Entre um exame e outro, Ketlen vê como o futebol feminino mudou. “Quando comecei, a gente viajava de ônibus, dormia em alojamentos improvisados, não tinha TV, não tinha rede social. Hoje já tem menina de 15 anos com contrato profissional, com patrocinador. Isso é maravilhoso. Ainda tem muito a evoluir, mas o caminho está aberto. Hoje as meninas crescem sonhando em ser jogadoras. No meu tempo, eu nem sabia se teria time para jogar no ano seguinte.”
Ao lado de Neymar, na festa de retorno do jogador ao clube em fevereiro deste ano – Reprodução
Mesmo prestes a dar à luz, ela já mira a próxima pré-temporada e, claro, um sonhado retorno. “Vai ser meu maior sonho entrar em campo com ele. Agora vou jogar por mim e por ele. Vai ser muito especial. Já falei para o pessoal do clube: podem me esperar que eu volto.”
Enquanto segue a rotina de treinos com limitações, Ketlen faz cursos de gestão esportiva, sonha ajudar o futebol feminino a crescer. “Quero que elas saibam que é possível. Que vejam que existe um caminho. Eu não tive ninguém para me orientar, tive que descobrir tudo sozinha. Se eu puder facilitar a vida de uma menina que sonha em jogar bola, já vai ter valido a pena.”
De Rio Fortuna para o mundo, Ketlen fez história e agora vive a maior conquista da vida. “Passei por muita coisa. Saí de uma cidade pequena, enfrentei rebaixamento, epilepsia, mudanças de país… e hoje sou mãe. Quero que meu filho um dia veja que a mãe dele nunca desistiu dos sonhos. Que ele saiba que cada gol, cada viagem, cada medalha teve muito esforço por trás. E que ele também pode conquistar o mundo, se quiser.”
Por enquanto, a pausa é para a maternidade. Mas não para os planos. A artilheira ainda quer voltar a balançar as redes, ajudar as Sereias da Vila e continuar escrevendo novos capítulos da própria história com clube – e que agora ganha um personagem a mais, o pequeno Lucca.
Na comemoração do título da Série A2 do Brasileirão, sem poder jogar, um ano depois da dolorosa queda – Reinaldo Campos/Santos FC
UMA ‘SEREIA’ ENTRE PEIXES
Sexta maior artilheira da história do clube, Ketlen ainda sonha com mais – Mauro Horita/Ag. Paulistão
Pego de surpresa com a notícia, o técnico Caio Couto, que recolocou o Santos na elite, precisou reconstruir o clube em 2025 com uma peça fundamental apenas como torcedora
“Para o Santos e, principalmente, para a comissão técnica, foi uma notícia que realmente nos pegou de surpresa. Justamente em um ano de reconstrução do futebol feminino do clube, em que precisávamos voltar à primeira divisão, tendo feito toda a pré-temporada com a presença da Ketlen. É claro que, em um primeiro momento, olhando pelo lado profissional, bateu aquela tristeza. Estamos falando da perda da maior artilheira da história do Santos, uma atleta com enorme capacidade de fazer gols e uma identidade gigante com a camisa. Por outro lado, era um sonho da atleta. Ela sempre falou do desejo de constituir família, de ser mãe. E recebeu todo o nosso apoio.
Ao lado do técnico Caio Couto, responsável por subir as Sereias à elite nacional – Reinaldo Campos/Santos FC
Continua treinando, fazendo algumas atividades, apenas evitando o contato físico. São trabalhos que não apresentam risco. É importante dizer que ela tem participado de tudo isso porque tem um desejo enorme de voltar a jogar futebol. Essa é uma forma de abreviar seu retorno, para que ele aconteça no menor prazo possível. Sempre há um profissional da comissão técnica com ela, normalmente alguém da preparação física, para auxiliar e monitorar qualquer sinal, como pressão e fadiga, garantindo que não haja nenhum problema. Tenho certeza de que ela voltará.”
UM DOLOROSO ADEUS
Em setembro, a camisa 7 se despediu da antiga companheira Suzana Agostini, mãe, multicampeã e artilheira histórica da Sereias da Vila entre 2006 e 2011. A ex-atacante morreu vítima de um câncer no útero aos 43 anos.
“O adeus à Suzana mexeu profundamente com todo o grupo. Desde as primeiras notícias de que ela estava doente, tentamos ajudar de todas as formas. Levantando recursos, nos mobilizando… Sabemos que o futebol feminino, infelizmente, no pós-carreira, é muito difícil, e acabamos não tendo muito disponível para o depois. A morte dela, tão jovem, nos pegou completamente desprevenidas.
A ex-parceira de ataque Suzana: inspiração e espécie de mentora no começo do Santos – Divulgação/Santos FC
Jogamos contra no ano passado — foi a última vez que a encontrei dentro de campo. Ela defendia o Realidade Jovem. Conversamos depois do jogo… Sinto saudades daquele jeitinho: sempre discutindo durante a partida e, depois, rindo com a gente. Soltava piadas no pré-jogo, no vestiário, e fazia todo mundo rir. Era uma pessoa muito alegre, extremamente extrovertida. Amávamos ter a companhia dela”.